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Justiça de Corumbá absolve contrabandista acusado de matar vereador








Em episódio marcado pela pressão e ameaças aos jurados, realizou-se em 24 de outubro de 1963 o julgamento do século em Corumbá. O réu foi o inspetor da alfândega da cidade, Carivaldo Sales (foto), indiciado pelo crime contra o vereador Edu Rocha, que o acusava de descaminho de automóveis da Bolívia para o Brasil. "O Cruzeiro", revista de maior circulação no país, e que veiculou as denúncias e denunciou o crime, deu cobertura ao evento, com a publicação de ampla reportagem, sob o título JUSTIÇA DE BRAÇOS CURTOS:

"Na cruz sobre a sepultura 184 do cemitério de Corumbá, uma placa lembra aos visitantes que ali está enterrado Edu Rocha, vereador covardemente assassinado pelo contrabandista Carivaldo Salles. Carivaldo era nada menos que o inspetor da Alfândega, a quem competia reprimir o comércio negro. Acusado por Edu Rocha, através de 'O Cruzeiro', de ser o chefe de uma gang todo-poderosa de contrabando, emboscou-o altas horas da noite e metralhou-o, atingindo também o porteiro da Câmara dos Vereadores, ferindo-o gravemente. São estes os fatos que toda a população conhece, ocorridos a 29 de julho de 1959.

Quatro anos depois, a 24 de outubro último, Carivaldo Salles é levado ao banco dos réus. Um juri popular com cartas marcadas, embora se respeitassem todas as formalidades legais, num julgamento presidido com isenção. Dos sete jurados, apenas dois negaram a absolvição. E quatorze horas antes já se conhecia o escore: 5 x 2.

O sorteio dos 21 jurados, dentre os quais seriam escolhidos sete para o juri, foi realizado a 11 de setembro, com 43 dias de antecedência portanto, pelo presidente do Tribunal do Juri de Corumbá, juiz Leolino Teixeira Júnior. Era tempo para que funcionassem tranquilamente a corrupção e a intimidação, embora vários deles nem disso precisassem, por suas notórias ligações com Carivaldo, sua família e seus negócios. Os poucos incorruptíveis foram recusados pela defesa, a cargo do criminalista Alfredo Tranjan, dentro do que lhe facultava a lei. Restaram apenas dois jurados insuspeitos, que felizmente impediram a unanimidade, permitindo assim ao promotor, sr. José Mirrha, que funcionou auxiliado pelo advogado Nelson Trad, de Campo Grande, contratado pela família da vítima, recorrer a novo julgamento.

De direito, a presidência do julgamento cabia ao juiz da 2a. Vara da Comarca de Corumbá, sr. Leolino Teixeira Junior. Depois que procedeu ao sorteio dos 21 jurados, entretanto, ele pediu licença para tratamento de saúde. Foi convocado para substituí-lo o juiz Leão Neto do Carmo, recém-promovido, por mérito, para Campo Grande.

A propósito desse licenciamento, recorda-se em Corumbá outro pedido, feito pelo mesmo juiz, e que mereceu a seguinte crítica do desembargador Barros do Valle, ao apreciar de habeas corpus em favor de Carivaldo Salles, impetrado pelo advogado Carlos Giordano em 16 de dezembro de 1959: "Não entendo por que o processo desse crime tão monstruoso, que abalou profundamente a opinião pública corumbaense e a imprensa de todo o país, vem sendo tão tumultuado pela justiça de Corumbá. Primeiro um juiz se licenciou por seis meses, o juiz de paz se deu por impedido, o primeiro suplente deu-se por doente, o segundo suplente deu-se por impedido.Conseguimos, com dificuldade, designar o único juiz-substituto de que dispúnhamos o de Barra das Garças, e esse entrou com pedido de licença para tratamento de saúde. Diante de tanto tumulto, só me resta atribuí-lo à covardia, ou que, por interesses subalternos, a justiça de Corumbá esteja agindo desse modo (...)"

Na sentença em que o juiz pronunciou o acusado - há uma falha dificilmente explicável. A Promotoria denunciou Carivaldo por homicídio qualificado e lesões corporais de natureza grave. O magistrado, embora afirmando receber a denúncia, pronunciou-o apenas por crime de homicídio, sem nenhum esclarecimento, conforme a lei preceitua, de que aceitava a denúncia apenas em parte e porque motivos o fazia. Um lapso.

Ao patrono do réu, Alfredo Tranjan, pouco valeu seu grande tirocínio durante o julgamento, que terminou na madrugada de 25 de outubro. Esperava-se que o criminalista famoso, a 'velha raposa', fosse engolir o jovem Nelson Trad, recém-saído da faculdade. No entanto, o que o juri fez foi pronunciar-se contra toda lógica e decência. Tranjan quis lançar contra a defesa a suspeita de coação sobre os jurados, que estariam sendo pressionados pela família da vítima, especialmente o irmão do vereador Badeco Rocha. Pediu a Ênio Salles, irmão do réu, que lhe entregasse uma das cartas que comprovariam a asserção. Leu-a, antes para si. Em seguida em pleno Tribunal bradou: Caí numa cilada! É que a carta não fora dirigida a nenhum dos membros do juri e era datada de Porto Alegre, 5 de setembro, antes do sorteio dos 21 jurados.

O promotor José Mirrha e o advogado Nelson Trad dirigiram seus argumentos ao plenário e à população de Corumbá, que acompanhava o julgamento pela rádio local. Sabiam que a maioria dos jurados ou estava sob coação ou havia sido subornada. De nada valeu a leitura da carta aberta que no dia do crime Carivaldo Salles fez publicar na imprensa local, ameaçando Edu Rocha; tampouco o depoimento de Artigas Villalba, contra o réu, de quem aliás fora auxiliar de confiança. Paradoxalmente, aceitaram os jurados as declarações do homem que negou ter ido à casa de Carivaldo comunicar-lhe o crime, destruindo assim seu único álibi.

Ainda na madrugada do dia 25, o carcereiro da cadeia pública de Corumbá refugiou-se na Base Naval de Ladário. Estava sob ameaça de morte por haver confirmado, no julgamento, que alguns dos jurados recusados pela acusação realmente visitavam frequentemente Carivaldo Salles na cadeia. Enquanto isto, um genro do réu ia à casa do promotor 'instar' junto à sua esposa para que o mesmo desistisse da apelação. Lá esteve ainda uma segunda vez. A Ordem dos Advogados, cientificada do ocorrido, em reunião extraordinária, protestou contra a tentativa de cerceamento. À noite, a maioria de seus membros esteve na casa do promotor José Mirrha para prestar-lhe solidariedade.

Carivaldo Salles voltará a julgamento. E desta vez o povo de Corumbá espera justiça".


VÍDEO: Veja a entrevista exclusiva do deputado Nelson Trad, então advogado de acusação, ao jornalista Sergio Cruz, em 2007.





FONTE: José Belém, Justiça de braços curtos, O Cruzeiro (RJ), 14 de dezembro de 1963.


FOTO: Rubens Américo


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